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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

OS ANIMAIS DO INCONSCIENTE

Tenho utilizado um método de Alejandro Jodorowski de modo frequente, vivendo momentos de grande intensidade junto a meus consulentes.
A técnica compreende a eleição de um animal para iniciar-se a consulta. Após evocar o animal o consulente participa da criação, junto com o tarólogo, do próprio esquema de lançamento, buscando figurar com as cartas a forma do animal. Esta forma de lançamento introduz um outro nível no jogo, que é a imagem do próprio animal evocado, e cujas qualidades devem ser consideradas na leitura, proporcionando um exercício criativo que confere outra dinâmica de relações. O mais interessante aqui é que cada animal passa a ser entendido também como símbolo, expressão da própria situação do consulente naquele momento, seja em relação a questões específicas ou a uma idéia de "situação geral".

A seguir descrevo dois destes lançamentos realizados, ambos originários do animal "cobra" porém muito diferentes entre si.

No primeiro caso foram utilizadas 7 cartas. A primeira correspondia à cabeça, ligada às questões mentais e intelectuais, e foi dedicada ao naipe de espadas; a segunda, logo em seguida e no local correspondente ao coração, às questões sentimentais e ao naipe de copas; a terceira casa, no estômago da cobra, foi dedicada ao naipe ouros e a questões financeiras e de saúde; a quarta, última antes da parte final da cauda, ligada ao naipe de paus e ao universo criativo e sexual. Como logo a seguir compreendemos que a cobra deveria ser venenosa, contemplando um princípio de dualidade. Sua cauda então afinaria repentinamente ao final do corpo, definindo a quinta casa que apontaria para aquilo que se deixa para trás, ou o passado recente. A sexta e a sétima carta foram dipostas à frente da carta da cabeça, representando as presas, e sendo o veneno tanto mortal quanto a fonte de seu próprio antídoto estabeleceu-se que elas representariam um aspecto negativo e outro positivo relativos ao futuro próximo, ou seja, um alerta para o bem e para o mal, circunstâncias vindouras boas e ruins, obstáculos e apontamentos favoráveis, etc. 

Definido o esquema passou-se a tiragem das cartas pelo consulente - a princípio apenas os arcanos maiores, dispostos nas mesa a partir da ordem preestabelecida:


De um modo muito resumido o jogo aqui revelou, com o Arcano X na casa 1, que o consulente passava por uma grande agitação mental, pois acabara de iniciar uma nova jornada (Arcano 0 na casa 5), deixando para trás uma vida profissional um pouco caótica (trabalhava como freelancer) para ingressar em um trabalho fixo, com boas perspectivas criativas e financeiras. 

A etapa seguinte compreendeu a escolha dos arcanos menores, buscando elucidar alguns pontos, e a seguinte composição foi formada:



O que chamou logo a atenção é que a figura indicava agora uma cobra mais gorda, pesada, como que em processo de digestão. Sua agitação mental estava relacionada a esta “digestão” de alguns impasses relacionados ao campo afetivo, sexual e financeiro. Ainda resumindo, os apontamentos futuros foram ficando claros: viver o novo quadro profissional - por mais que às vezes a adaptação ao novo modo de trabalho seja difícil e até sofrida - buscando concentrar-se e equilibrar-se e eliminando a agitação mental (Arcano XII na casa VI); por outro lado, evitar transformações muito repentinas e radicais, não é o momento – o período é de paciência e estabilidade, condições que garantem uma “digestão” mais bem sucedida das mudanças, sem precipitações e mal-estares.

O segundo lançamento feito a partir do animal “cobra” realizou-se de modo absolutamente diverso. A cobra no caso tinha cor – era negra – e habitava sonhos frequentes do consulente. Tendo origem onírica, possuía olhos amarelos e grandes presas, além de uma cruz gravada na testa, evocando assim uma imagem extramamente forte para o início do jogo. O corpo da serpente, no sonho, aparecia sempre armado em bote, e a cabeça inclinada para frente sugeria ao mesmo tempo força, reverência e humildade (nas palavras do consulente) – um verdadeiro animal de poder.

O mais difícil foi descobrir como representar os elementos distintivos desta cobra: para além do corpo arqueado, a cruz na fronte, os olhos amarelos e as enormes presas. A estrutura do animal compreendeu 5 cartas, com posições cujas funções foram definidas após resolvermos a representação da cruz na testa com duas cartas cruzadas logo acima da carta da cabeça e que nos revelariam a essência, ou os segredos desta cobra; depois, foram mais duas cartas cruzadas para os olhos, que por serem amarelos foram associados ao naipe de ouros, entendido aqui no sentido alquímico – espírito e matéria a um só tempo; por fim resolvemos as enormes presas com outras duas cartas cruzadas, figurando como na primeira cobra um apontamento positivo e outro negativo.

Vale sublinhar que este tipo de solução só é possível pelo entendimento básico de que estamos diante de um esquema, o que permite um bom nível de abstração na forma da representação dos diversos animais. Assim houve uma significativa variação em relação a cobra do jogo anterior: a carta relativa a cabeça, abaixo da “cruz na testa”, foi associada ao plano mental/naipe de espadas; a carta seguinte aos sentimentos/naipe de copas; a próxima às questões sexuais e criativas/paus; a penúltima ao passado e a derradeira entendemos como uma carta de alerta, contabilizando 11 cartas ao total, que escolhidas foram abertas de acordo com a seguinte disposição:


O diálogo estabelecido com o consulente a partir desta tiragem foi sem dúvida muito interessante. Os arcanos XVIII e XII na cruz da testa revelaram toda o potencial mágico, de transformação, deste animal onírico. Em sorteio adicional agregou-se ao jogo o Ás de Ouros como síntese desta cruz na testa, o que para nós confirmou a potencialidade alquímica desta força. Tirou-se também o Sete de Espadas na casa 7 (alerta) e o Oito de Copas na casa 11 (síntese da polaridade entre negativo e positivo), configurando assim a forma final do jogo:


Apenas para ilustrar, o consulente vivia uma espécie de obsessão com uma outra pessoa, uma relação que viria de outras encarnações, algo como um amor imemorial e espiritualmente interdito. Como busco conduzir o atendimento por uma perspectiva terapêutica e de autoconhecimento, encaminhei a leitura a partir do alerta da casa 7, com o Diabo e o Sete de Espadas indicando o perigo de deixar-se aterrar pelo lado negativo desta negra serpente: a narrativa reencarnacionista (real ou não, não sabemos, pois trata-se de um mistério) apresentava-se como fonte de enorme perturbação emocional (Papisa), da qual o consulente buscava se libertar racionalmente (daí a Estrela no plano mental). 

Dito isto, o foco do encaminhamento foi: viver o presente desta vida! Nada de colocar as perturbações na conta de “vidas passadas” . Resolver-se no aqui e no agora! A própria idéia de alquimia compreende uma transubstanciação que se faz pelo cruzamento entre espiritualidade e ciência, mistiscismo e razão, autoconhecimento e equilíbrio mental: é necessário afastar-se desta idéia de “amor imemorial” (8 de Copas), advindo de vertiginosas reencarnações sucessivas (A Roda Fortuna) e abandonar o obssessor a partir da própria força da magia (O Mago), entendida como potencialidade de transmutação existencial presente no próprio consulente.

Uma tiragem densa, meio louca, iluminada e sombreada pela força da imagem evocada, cobrindo o jogo de uma atmosfera mágica e proporcionando uma experiência intensa e intrigante. É certo que jamais teria chegado a estas formulações de leitura sem a disposição do consulente em revelar este segredo íntimo, associado à imagem da cobra negra. A técnica de Alejandro Jodorowsky estabelece um desafio colaborativo e propõe uma relação criativa durante o atendimento, não só na definição do jogo, mas no encontro de cada caminho de individuação.

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