Tenho
utilizado um método de Alejandro Jodorowski de modo frequente,
vivendo momentos de grande intensidade junto a meus consulentes.
A técnica
compreende a eleição de um animal para iniciar-se a consulta. Após
evocar o animal o consulente participa da criação, junto com o
tarólogo, do próprio esquema de lançamento, buscando figurar com
as cartas a forma do animal. Esta forma de
lançamento introduz um outro nível no jogo, que é a imagem do
próprio animal evocado, e cujas qualidades devem ser consideradas na
leitura, proporcionando um exercício criativo que confere outra
dinâmica de relações. O mais interessante aqui é que cada animal
passa a ser entendido também como símbolo, expressão da própria
situação do consulente naquele momento, seja em relação a
questões específicas ou a uma idéia de "situação geral".
A seguir
descrevo dois destes lançamentos realizados, ambos originários do
animal "cobra" porém muito diferentes entre si.
No primeiro
caso foram utilizadas 7 cartas. A primeira correspondia à cabeça,
ligada às questões mentais e intelectuais, e foi dedicada ao naipe
de espadas; a segunda, logo em seguida e no local correspondente ao
coração, às questões sentimentais e ao naipe de copas; a
terceira casa, no estômago da cobra, foi dedicada ao naipe ouros e a
questões financeiras e de saúde; a quarta, última antes da parte
final da cauda, ligada ao naipe de paus e ao universo criativo e
sexual. Como logo a seguir compreendemos que a cobra deveria ser
venenosa, contemplando um princípio de dualidade. Sua cauda então
afinaria repentinamente ao final do corpo, definindo a quinta casa
que apontaria para aquilo que se deixa para trás, ou o passado
recente. A sexta e a sétima carta foram dipostas à frente da carta
da cabeça, representando as presas, e sendo o veneno tanto mortal
quanto a fonte de seu próprio antídoto estabeleceu-se que elas
representariam um aspecto negativo e outro positivo relativos ao
futuro próximo, ou seja, um alerta para o bem e para o mal,
circunstâncias vindouras boas e ruins, obstáculos e apontamentos
favoráveis, etc.
Definido o esquema passou-se a tiragem das cartas
pelo consulente - a princípio apenas os arcanos maiores, dispostos
nas mesa a partir da ordem preestabelecida:
De um modo
muito resumido o jogo aqui revelou, com o Arcano X na casa 1, que o
consulente passava por uma grande agitação mental, pois acabara de
iniciar uma nova jornada (Arcano 0 na casa 5), deixando para trás
uma vida profissional um pouco caótica (trabalhava como freelancer)
para ingressar em um trabalho fixo, com boas perspectivas criativas e
financeiras.
A etapa seguinte compreendeu a escolha dos arcanos
menores, buscando elucidar alguns pontos, e a seguinte composição
foi formada:
O que
chamou logo a atenção é que a figura indicava agora uma cobra
mais gorda, pesada, como que em processo de digestão. Sua agitação
mental estava relacionada a esta “digestão” de alguns impasses
relacionados ao campo afetivo, sexual e financeiro. Ainda
resumindo, os apontamentos futuros foram ficando claros: viver o novo
quadro profissional - por mais que às vezes a adaptação ao novo
modo de trabalho seja difícil e até sofrida - buscando
concentrar-se e equilibrar-se e eliminando a agitação mental
(Arcano XII na casa VI); por outro lado, evitar transformações
muito repentinas e radicais, não é o momento – o período é de
paciência e estabilidade, condições que garantem uma “digestão”
mais bem sucedida das mudanças, sem precipitações e mal-estares.
O segundo
lançamento feito a partir do animal “cobra” realizou-se de modo
absolutamente diverso. A cobra no caso tinha cor – era negra – e
habitava sonhos frequentes do consulente. Tendo origem onírica,
possuía olhos amarelos e grandes presas, além de uma cruz gravada
na testa, evocando assim uma imagem extramamente forte para o início
do jogo. O corpo da serpente, no sonho, aparecia sempre armado em
bote, e a cabeça inclinada para frente sugeria ao mesmo tempo força,
reverência e humildade (nas palavras do consulente) – um
verdadeiro animal de poder.
O mais
difícil foi descobrir como representar os elementos distintivos
desta cobra: para além do corpo arqueado, a cruz na fronte, os olhos
amarelos e as enormes presas. A estrutura do animal compreendeu 5
cartas, com posições cujas funções foram definidas após
resolvermos a representação da cruz na testa com duas cartas
cruzadas logo acima da carta da cabeça e que nos revelariam a
essência, ou os segredos desta cobra; depois, foram mais duas cartas
cruzadas para os olhos, que por serem amarelos foram associados ao
naipe de ouros, entendido aqui no sentido alquímico – espírito e
matéria a um só tempo; por fim resolvemos as enormes presas com
outras duas cartas cruzadas, figurando como na primeira cobra um
apontamento positivo e outro negativo.
Vale sublinhar que este tipo
de solução só é possível pelo entendimento básico de que
estamos diante de um esquema, o que permite um bom nível de
abstração na forma da representação dos diversos animais. Assim
houve uma significativa variação em relação a cobra do jogo
anterior: a carta relativa a cabeça, abaixo da “cruz na testa”,
foi associada ao plano mental/naipe de espadas; a carta seguinte aos
sentimentos/naipe de copas; a próxima às questões sexuais e
criativas/paus; a penúltima ao passado e a derradeira entendemos
como uma carta de alerta, contabilizando 11 cartas ao total, que
escolhidas foram abertas de acordo com a seguinte disposição:
O diálogo
estabelecido com o consulente a partir desta tiragem foi sem dúvida
muito interessante. Os arcanos XVIII e XII na cruz da testa revelaram
toda o potencial mágico, de transformação, deste animal onírico.
Em sorteio adicional agregou-se ao jogo o Ás de Ouros como síntese
desta cruz na testa, o que para nós confirmou a potencialidade
alquímica desta força. Tirou-se também o Sete de Espadas na casa 7
(alerta) e o Oito de Copas na casa 11 (síntese da polaridade entre
negativo e positivo), configurando assim a forma final do jogo:
Apenas
para ilustrar, o consulente vivia uma espécie de obsessão com uma
outra pessoa, uma relação que viria de outras encarnações, algo
como um amor imemorial e espiritualmente interdito. Como
busco conduzir o atendimento por uma perspectiva terapêutica e de
autoconhecimento, encaminhei a leitura a partir do alerta da casa 7,
com o Diabo e o Sete de Espadas indicando o perigo de deixar-se
aterrar pelo lado negativo desta negra serpente: a narrativa
reencarnacionista (real ou não, não sabemos, pois trata-se de um
mistério) apresentava-se como fonte de enorme perturbação
emocional (Papisa), da qual o consulente buscava se libertar
racionalmente (daí a Estrela no plano mental).
Dito isto, o foco do
encaminhamento foi: viver o presente desta
vida! Nada de colocar as perturbações na conta de “vidas
passadas” . Resolver-se no aqui e no agora! A própria idéia de
alquimia compreende uma transubstanciação que se faz pelo
cruzamento entre espiritualidade e ciência, mistiscismo e razão,
autoconhecimento e equilíbrio mental: é necessário afastar-se
desta idéia de “amor imemorial” (8 de Copas), advindo de
vertiginosas reencarnações sucessivas (A Roda Fortuna) e abandonar
o obssessor a partir da própria força da magia (O Mago), entendida
como potencialidade de transmutação existencial presente no próprio
consulente.
Uma tiragem
densa, meio louca, iluminada e sombreada pela força da imagem
evocada, cobrindo o jogo de uma atmosfera mágica e proporcionando
uma experiência intensa e intrigante. É certo que jamais teria
chegado a estas formulações de leitura sem a disposição do
consulente em revelar este segredo íntimo, associado à imagem da
cobra negra. A técnica de Alejandro Jodorowsky estabelece um desafio
colaborativo e propõe uma relação criativa durante o atendimento,
não só na definição do jogo, mas no encontro de cada caminho de
individuação.
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